Os atropelados pela Copa
Em Natal, obras consomem R$ 661,8 milhões de cofres dos governos; por
solicitação do MP, Audiência Pública discute impacto ambiental e despejo
de 449 famílias na próxima sexta-feira
Eu passava por aquelas casas todos os dias, observando as mensagens
de protesto expostas em faixas pretas e letras brancas, penduradas
improvisadamente na fachada de portões e paredes, sem noção do que se
passava por trás delas. Até que um dia desci do ônibus disposta a ouvir,
e conheci dona Osanete, seu Pedro e seu Antônio, alguns dentre os
tantos atingidos diretamente pelas obras de Mobilidade Urbana, bancadas
pelo governo federal e por recursos locais.
Eles são alguns dos atropelados pela Copa do Mundo em Natal.
No lote um, na rua Felizardo Moura, no bairro Nordeste, Maria Eunice
lavava roupa no quintal de casa quando três homens com uniforme da
prefeitura bateram à sua porta e lhe entregaram uma carta. “Cada um
procure a prefeitura e a Semurb”, disseram os funcionários antes de ir
embora. No documento, a dona de casa viu pela primeira vez a palavra
“desapropriação”.
A casa de Maria Eunice Silva Lima, 54, e Antônio Fernando de Lima,
65, tem um terreno de 206 metros quadrados, que eles fazem questão de
dizer que é lajeado e possui dois andares, resultado de uma reforma que o
próprio Antônio cuidou, desde a compra do terreno, em 1999, por R$ 900.
Próximo a Ponte de Igapó, que dá acesso a Zona Norte da cidade, a visão
que o casal e suas duas filhas têm da casa de terreno alto é a do Rio
Potengi, com o mangue verde musgo que o acompanha até a praia. Da porta,
Eunice assiste as netas brincarem no pé de siriguela, bem no meio do
terraço, nas manhãs de domingo.
No lote dois, na Avenida Capitão Mor Gouveia, bairro Lagoa Nova, a
pernambucana Osanete Bandeira Epaminondas da Silva, 71, ficou sabendo da
possível desapropriação de sua casa através do noticiário local, em
abril de 2011. “O projeto vai avançar 12 metros à esquerda da avenida”,
confirmou um rapaz da secretaria quando ela, sua filha e um vizinho,
foram à prefeitura, ela conta. Enfermeira aposentada do exército, divide
a casa com filhos, netos e bisnetos, além dos hóspedes da pousada que
seu marido projetou, mas não concluiu antes de falecer.
Maria Eunice e dona Osanete moram no início e fim, respectivamente,
do chamado Corredor Estruturante, que ligará o novo aeroporto, em São
Gonçalo do Amarante, região metropolitana de Natal, ao novo estádio
Arena das Dunas. O projeto é dividido em dois lotes; no primeiro estão o
corredor estrutural Oeste/BR-226, o complexo viário da Urbana, e a
reestruturação geométrica da Avenida Capitão Mor Gouveia, com a
construção de pontilhão elevado e um túnel de 8,6km; o lote dois, no
entorno do estádio, ainda não teve seu projeto concluído, mas deverá
contar com seis entroncamentos e plataformas de embarque/desembarque,
segundo consta do documento assinado pelo ministério do Transporte,
divulgado no site de transparência da Copa do Mundo, em abril de 2012. O
corredor foi orçado em R$338,8 milhões, com 14% pago pelo município, e
86% financiado pela Caixa Econômica Federal. Segundo o mesmo documento,
as obras do lote um tiveram a licença ambiental dispensada.
Sob responsabilidade do governo estadual, está o acesso ao novo
Aeroporto de São Gonçalo do Amarante, com ligação à BR-226 e à BR-406,
orçado em R$ 73 milhões; a reestruturação da Avenida Engenheiro Roberto
Freire, orçada em R$221,7 milhões; e a implantação da Via Prudente de
Morais, com extensão de 4,7Km, que dá acesso ao atual Aeroporto Augusto
Severo, orçada em R$ 28,2 milhões.
O estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado, o “Machadão”, foi
doado ao estado do Rio Grande do Norte pelo município para dar lugar ao
novo estádio Arena das Dunas, orçado em R$ 417 milhões, com 95% do valor
financiado pelo BNDES.
As obras da Copa também estão isentas da lei de responsabilidade
fiscal – somente no último quadrimestre, o governo ultrapassou R$ 73
milhões do limite estabelecido por essa legislação
“Eles estão invadindo terreno do Estado e desviando dos empresários”, diz membro da APAC
Marcos Reinaldo da Silva, 66, funcionário público federal aposentado,
reuniu sete vizinhos e, em abril de 2011, formou um grupo para
representar os moradores da área em uma visita a Semopi (Secretaria
Municipal de Obras Públicas e Infraestrutura), onde tomou conhecimento
do projeto de mobilidade urbana em Natal. Com a criação do Comitê
Popular local, participou, em outubro do mesmo ano, de uma reunião que
deu origem a uma associação para defender os moradores: a Associação
Potiguar dos Atingidos Pela Copa (APAC), da qual hoje ele é coordenador
adjunto.
Segundo o representante da APAC, o projeto do corredor estrutural
segue um traçado que preserva as grandes repartições públicas – como o
Tribunal Regional do Trabalho (TRT) e a Secretaria de Tributação, além
de uma agência do Banco do Brasil -, a sede da empresa de ônibus
Guanabara e a construtora Marquise, que presta serviço de transbordo de
lixo para a prefeitura. O único empreendimento de grande porte que será
atingido pelo projeto de mobilidade urbana é o que possui um viés
popular, a Central de Comercialização da Agricultura Familiar, criada
através de um convênio entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o
governo. Inaugurada em 2010, ao custo de R$ 1,4 milhão aos cofres
públicos, nunca foi utilizada.
“Eles estão invadindo terreno do Estado e desviando dos empresários”,
afirma Marcos Reinaldo, apontando o local das obras em fotos via
satélite no Programa de Mobilidade Urbana da Cidade do Natal. Morador do
lote dois, na Avenida Mor Gouveia, há 37 anos, ele afirma que outras
alternativas foram propostas por arquitetos e urbanistas do Comitê
Popular da Copa mas não obtiveram retorno do governo. Uma delas era a de
tornar a avenida uma via de mão única, evitando desapropriações e
reduzindo o custo para menos da metade do orçamento previsto.
Além disso, o projeto original da avenida atravessava a sede da
governadoria, que fica ao lado do estádio Arena das Dunas, dando acesso
direto a BR-101. Segundo Marcos, essa parte do projeto foi eliminada,
com repercussões no trânsito: “Os carros vão chegar aqui no final da
avenida e entrar no mesmo gargalo de antes, dando a volta no estádio
inteiro, passando por dois sinais, até chegar a BR-101. Essa obra não
vai resolver o problema de mobilidade em Natal”.
O consórcio EBEI MWH Brasil – Empresa Brasileira de Engenharia de
Infra-estrutura Ltda e MWH Brasil Engenharia e Projetos Ltda – foi
contratado pela Prefeitura do Natal em 2010, por R$ 7,2 milhões. Desde
então, o consórcio é responsável pela prestação de serviços de
consultoria para consolidação dos projetos básicos e elaboração dos
projetos executivos das intervenções do Programa de Mobilidade Urbana de
Natal, no período contratual de 8 de dezembro de 2011 a 6 de março de
2012. Mas segundo o secretário adjunto da Semopi, Caio Múcio, o contrato
teve um aditivo de prazo até o final de junho. Apesar da extensão
contratual, o secretário adjunto nega ter havido aumento de custo no
contrato.
Desapropriações e obras que não correspondem ao interesse público
De acordo com um dos coordenadores do Comitê Popular da Copa e
Conselho Estadual de Direitos Humanos da OAB, Marcos Dionísio, apenas
uma alternativa foi apresentada pelo consórcio responsável pelo projeto,
sem qualquer participação popular: “Eles não têm uma visão integral do
que é necessário para que Natal sedie um evento desse porte. Sobretudo
no que diz respeito ao Estatuto da Cidade e Plano Diretor”, afirmou.
O valor estipulado para a desapropriação de uma residência é definido
através de uma avaliação independente, que deve levar em consideração a
valorização da área e a estrutura física do imóvel, além do valor venal
do IPTU, estipulado pela própria prefeitura. Moradores denunciaram a
redução drástica do valor venal em 2012, interferindo nessa avaliação.
É o caso de dona Antonieta Bezerra, 70, que mora na última casa da
extensão do lote dois. O valor venal de seu imóvel passou de R$ 102,503
mil em 2011 para R$ 87,266 mil em 2012. Marcos Dionísio também relata
que um comerciante proprietário de um terreno no bairro das Quintas, com
valor venal de R$ 448 mil no momento da legalização do imóvel (e taxas
correspondentes), viu esse valor baixar para R$ 148 mil ao receber a
carta da prefeitura com o valor da indenização.
A rede de Advogados Populares denunciou que os próprios fiscais da
prefeitura estavam fazendo a medição e avaliação desses terrenos, de
forma unilateral. Por isso, o MP pretende nomear um perito responsável
pelas avaliações que será acompanhado por representantes do Comitê
Popular para comprovar a regularidade dos trabalhos.
Segundo o secretário adjunto da Semopi, Caio Múcio, todas as
desapropriações feitas pelo município passam por uma comissão
independente, a Comissão de Avaliação de Imóveis para Desapropriações
(CAID), composta por três engenheiras. “Até agora, quem foi avaliado,
não reclamou do preço”, afirmou. Ainda segundo Caio, o valor total para
fins de desapropriação não está fechado. Depende da finalização de todas
as avaliações.
Apesar de nenhuma desapropriação ter sido feita até agora, a Semopi
considera que as obras de mobilidade já começaram, devido ao início dos
desvios necessários para interditar o tráfego e sinalizar as vias nos
pontos onde o projeto deve passar. “A obra, se começar em junho, deverá
estar pronta em abril de 2014, a um mês do início do mundial. Mas
qualquer obra pode ser antecipada se aumentarmos a produtividade”,
afirma.
Após a audiência pública da próxima sexta, 22, o secretário acredita
que não haverá mais nenhuma pendência que possa atrasar novamente as
obras.
“Essa obra já melhora bastante o tráfego em Natal principalmente
quando o aeroporto estiver funcionando, tornando a ligação rápida e
segura. Isso tudo, a meu ver, como morador da cidade e como usuário de
carro, resolve bastante. Precisa de mais coisa, lógico, mas essa é uma
parte importante, principalmente pelo novo aeroporto”, explicou o
secretário.
Do outro lado da história, moradores com dona Osanete, em Lagoa Nova,
seu Antônio e dona Maria Eunice, no bairro das Quintas, correm contra o
tempo para regularizar a declaração pública da casa e entrar com a ação
de usucapião, para terem ao menos direito à indenização do imóvel.
Nenhum deles é contra a Copa do mundo em Natal, mas todos querem fazer parte do bom legado.
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.